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Psicopatologia Dinâmica: Convergência da subjetividade e Abordagens Psicológicas sob a lógica quineana

A forma como percebemos o mundo define, em grande parte, a maneira como lidamos com nossas emoções e, consequentemente, como agimos. Na perspectiva da psicopatologia dinâmica, o foco recai sobre os processos internos e subjetivos que moldam nossa experiência, em contraposição à mera descrição de sintomas (psicopatologia descritiva). É nesse sentido que podemos pensar no caminho do comportamento através de quatro variáveis principais:

  1. Sensação: a captura dos estímulos ambientais por meio dos órgãos sensoriais;
  2. Percepção: o processamento desses estímulos com base na nossa estrutura cognitiva adquirida ao longo da vida do sujeito;
  3. Emoção: mobilizada pela percepção, com o objetivo de classificar e significar as experiências, além de organizar os comportamentos adquiridos;
  4. Comportamento: a resposta ou reação escolhida pela emoção mobilizada, visando à adaptação ao ambiente.

Ao trazermos a lógica de Willard Van Orman Quine para essa discussão, passamos a entender que as formas de explicar o comportamento (ou a experiência de adoecimento psíquico) não podem ser consideradas em separado dos sistemas conceituais nos quais cada abordagem psicológica se ancora. Para Quine, o conhecimento é um sistema interdependente, onde cada afirmação só ganha sentido dentro da totalidade de crenças e teorias do indivíduo. Da mesma forma, as diferentes abordagens psicológicas constroem seus entendimentos de psicopatologia a partir de seus próprios referenciais teóricos, e cabe a nós observar como esses referenciais podem se complementar ou divergir ao explicar a dinâmica do sofrer humano.

Na visão quineana, não existe uma observação pura e independente de teorias. Toda percepção do mundo é mediada por uma rede de conceitos, valores e crenças que construímos ao longo da vida. Assim, quando falamos de psicopatologia, estamos lidando não apenas com um conjunto de sintomas e sinais, mas com um indivíduo que interpreta o que vivencia de acordo com sua realidade subjetiva — realidade essa permeada por seu contexto sociocultural, histórico e pelas teorias que fundamentam as intervenções.

Em termos práticos, cada abordagem psicológica oferece uma lente diferente para compreender como os quatro elementos (sensação, percepção, emoção e comportamento) se relacionam. Ao adotarmos uma perspectiva holística, inspirada em Quine, reconhecemos que cada teoria contribui para a construção de um grande “tecido conceitual”, no qual podemos transitar para melhor compreender a dinâmica do sofrimento psíquico.


Abordagens Psicológicas e Psicopatologia Dinâmica

Psicanálise (Freud, Klein, Winnicott, etc.)

A psicanálise tradicional enfatiza os conteúdos inconscientes e as forças motivacionais internas. Na psicopatologia dinâmica, um psicanalista poderia dizer que a percepção do indivíduo é colorida por processos inconscientes — desejos, fantasias e experiências infantis recalcadas. Assim, a emoção que emerge (ansiedade, medo, raiva) estaria diretamente ligada a conflitos intrapsíquicos. O comportamento, por sua vez, seria uma tentativa de manejar ou deslocar essas tensões inconscientes para a realidade externa. A psicanálise consegue, de certo modo, contemplar os aspectos filogenéticos de um sujeito, ou seja, seus comportamentos herdados geneticamente, manifestados de forma inconsciente ao longo de sua vida.

Psicologia Analítica (Jung)

Na visão junguiana, haveria também um reconhecimento de forças inconscientes, mas voltado às imagens arquetípicas e à busca de individuação. A percepção e a emoção adquirem aspectos simbólicos e mitológicos, onde o sintoma pode ser visto como expressão de desequilíbrios entre consciente e inconsciente. Uma crise ou sintoma clínico pode estar sinalizando a necessidade de integração de aspectos sombrios ou desconhecidos da psique.

Abordagem Cognitivo-Comportamental (Beck, Ellis, etc.)

Da perspectiva cognitivo-comportamental, a ênfase recai sobre as interpretações (pensamentos automáticos, crenças centrais) que o indivíduo faz de certos estímulos sensoriais e situações. Assim, a forma como se percebe o evento molda a emoção resultante. O comportamento, então, é entendido como consequência direta desses esquemas cognitivos e do estado emocional que eles geram. Nesse modelo, o tratamento busca reestruturar pensamentos disfuncionais e promover aprendizagens que levem a comportamentos mais adaptativos.

Humanismo/Existencialismo (Rogers, Maslow, May)

A abordagem humanista-existencial coloca a subjetividade, a liberdade de escolha e a responsabilidade individual no centro da análise. A percepção é singular a cada pessoa e vai determinar como os eventos do mundo são sentidos emocionalmente. A ênfase está na busca por autenticidade, autorrealização e sentido da existência. A psicopatologia surge quando o indivíduo não consegue expressar plenamente sua subjetividade ou quando vive incongruências entre o self real e o self ideal.

Sistêmica/Familiar

Na terapia sistêmica, a percepção individual é compreendida como parte de um contexto relacional mais amplo. As emoções são vistas como respostas às interações no sistema (familiar, conjugal, social). O comportamento patológico pode ser sinal de um padrão disfuncional de comunicação ou papéis familiares rígidos. A mudança, nesse caso, envolve a modificação das dinâmicas relacionais, visando a um ajuste saudável entre o indivíduo e seu meio.

Gestalt-Terapia (Perls, Wertheimer, Köhler, etc.)

A Gestalt enfatiza o aqui e agora e a consciência em ação consciente (awareness). A percepção é um processo dinâmico, em que a forma (gestalt) se destaca do fundo. Sintomas podem representar gestalts inacabadas ou bloqueios de contato. A emoção emerge nesse fluxo de experiência, e o comportamento disfuncional é entendido como a interrupção do contato saudável com o meio (evitação, projeção, retroflexão etc.).

Teoria Social Cognitiva (Albert Bandura)

A Teoria Social Cognitiva enfatiza a aprendizagem por observação e a influência recíproca entre fatores pessoais, comportamentais e ambientais. Bandura propõe o conceito de reciprocidade triádica, onde o ambiente afeta o indivíduo, que por sua vez influencia o ambiente, e ambos impactam o comportamento. Além disso, processos de modelação são fundamentais, pois as pessoas aprendem a partir de exemplos observados em outros indivíduos. No contexto psicopatológico, a percepção de autoeficácia desempenha um papel determinante: a crença que uma pessoa tem sobre sua capacidade de realizar ações específicas afeta tanto seu estado emocional quanto seu modo de se comportar. Assim, dificuldades como a ansiedade e a esquiva social podem ser mantidas ou agravadas quando o indivíduo desenvolve a convicção de que não é capaz de lidar com determinadas situações, reforçando um ciclo disfuncional que envolve crenças, emoções e comportamentos.


Ilustrando com um Caso Clínico

Caso “Mariana”:
Mariana, 28 anos, procura terapia por apresentar ansiedade intensa em situações sociais. Em eventos com amigos ou no trabalho, sente que sua respiração fica ofegante, seu coração acelera e frequentemente evita expressar suas opiniões. Ao relatar a história, descreve ter tido pais superprotetores, que a criticavam quando sua performance não era “perfeita”.

  • Sensação: Em situações sociais, Mariana capta sinais de julgamento (expressões faciais, entonações de voz).
  • Percepção: A interpretação de Mariana é de que as pessoas a desaprovam. Ela se sente “inadequada” e com medo de rejeição.
  • Emoção: Medo (manifestado em ansiedade) e tristeza (manifestada em vergonha) aparecem com força, mobilizando nela a sensação de que não deve se expor.
  • Comportamento: Ela evita falar e foge de maiores aproximações, reforçando o ciclo ansioso.

Compreendendo o quadro de Mariana sob uma ótica multidisciplinar.

O caso de Mariana pode ser compreendido de maneira integrada quando percebemos que seus receios de julgamento e a dificuldade em se expressar derivam, em grande parte, de padrões inconscientes [psicanálise], formados ao longo de sua infância com pais superprotetores, mas que também se relacionam às crenças centrais de inadequação [cognitivo-comportamental]. Enquanto os processos inconscientes podem revelar um superego muito crítico, provavelmente introjetado a partir das figuras parentais [psicanálise / humanista-existencial], as distorções cognitivas reforçam a sensação de que as pessoas ao seu redor estão sempre à procura de falhas [cognitivo-comportamental / gestalt]. Como resultado, Mariana acaba interrompendo o contato mais genuíno consigo mesma e com os outros, alimentando uma vigilância constante [gestalt].

Sob a ótica existencial, a falta de liberdade que Mariana sente para se expressar evidencia uma incongruência entre o self que ela deseja ser e o self que acredita precisar mostrar ao mundo para atender expectativas externas [humanista-existencial]. Assim, a percepção que Mariana tem de si mesma está profundamente ligada ao temor de rejeição, afetando sua autoimagem e a maneira como ela atribui significado às próprias vivências.

Ao analisarmos o contexto familiar e social, torna-se claro que a ansiedade não se limita ao indivíduo, mas também reflete padrões relacionais [sistêmica]. A superproteção dos pais pode ter restringido a autonomia de Mariana, reforçando sua crença de que não é capaz de lidar sozinha com as pressões do ambiente.

Quando consideramos ainda o papel da aprendizagem social, a convicção de Mariana de que não consegue enfrentar situações públicas pode se fortalecer ao comparar-se a pessoas que dominam a fala em público e concluir que ela nunca atingirá esse padrão [teoria social cognitiva]. A baixa percepção de autoeficácia, somada à tendência de evitar interações, cria um ciclo de retroalimentação que agrava a ansiedade.

Desse modo, a experiência de Mariana resulta de uma constelação de fatores: desejos inconscientes e um superego rígido [psicanálise], cognições distorcidas que influenciam seu modo de perceber a si e aos outros [cognitivo-comportamental], bloqueios de contato no presente [gestalt], busca por autenticidade e autorrealização [humanista-existencial], padrões familiares que perpetuam o quadro [sistêmica], além do peso de observações de modelos sociais que afetam sua crença em suas próprias capacidades [teoria social cognitiva]. Tudo isso se entrelaça na percepção de Mariana, que molda sua forma de sentir e agir, descrevendo assim uma psicopatologia verdadeiramente dinâmica.


Da visão monotética para a compreensão idiográfica

Falar de psicopatologia dinâmica do ponto de vista da percepção é compreender que os fenômenos psíquicos não são meros conjuntos de sintomas catalogáveis, mas sim processos subjetivos em constante movimento. Sob a lógica quineana, percebemos que toda compreensão é filtrada por nossas teorias, nossa bagagem conceitual e que, portanto, ao unirmos diferentes abordagens psicológicas, podemos nos aproximar cada vez mais de um entendimento integral do sofrimento humano.

Essa convergência entre abordagens não significa homogeneizar as visões, mas buscar uma complementariedade que enriqueça a prática clínica e a compreensão de casos como o de Mariana. Somente assim, poderemos oferecer intervenções que alcancem de forma efetiva e significativa a complexidade única de cada indivíduo — do sensorial ao comportamental, do inconsciente às relações sociais, do significado pessoal ao sentido existencial.

No entanto, ao adotar uma visão monotética, poderíamos enquadrar Mariana exclusivamente em um diagnóstico de Transtorno de Ansiedade Social, aplicando critérios fixos que, embora úteis na avaliação clínica, podem deixar de fora nuances da sua experiência particular. Já a perspectiva idiográfica reconhece que a história, as crenças, os relacionamentos e os contextos de Mariana moldam de maneira singular aquilo que chamamos de ansiedade social. Dessa forma, torna-se necessária uma compreensão mais profunda de como cada elemento se integra no seu universo subjetivo.

Há beleza em todas as abordagens, sendo fundamental que se compreenda cada uma o mais amplamente possível. Entretanto, na prática da psicoterapia clínica, é essencial adotar uma linha teórica bem delimitada e mantê-la de forma consistente, garantindo coerência e eficácia na condução de cada caso. Caso contrário, corre-se o risco de se perder nesse labirinto que é a mente humana. na condução de cada caso. Caso contrário, corre-se o risco de se perder nesse labirinto que é a mente humana.