Não há momento mais oportuno para inaugurar a escrita do Psicologando, pois exatamente neste período de 2024, atravessamos uma das mais emocionantes epopeias do cidadão comum: o Big Brother Brasil.
Confesso que não sou fã do reality que mais faz sucesso em nosso país, e não por uma questão de altivez, mas por acreditar que seu consumo é prejudicial para a saúde mental. Explico-me:
Se consumíssemos o programa com um viés de pesquisa comportamental, obviamente, seria fascinante! São 26 sujeitos em uma super caixa de Skinner, onde, por razão controlada, o pesquisador libera um determinado estímulo para avaliar o comportamento de cada um dos organismos presentes naquele contexto. Apesar de fascinante, aspectos éticos em pesquisas com humanos jamais permitiriam tal barbaridade. Para uma ilustração sobre isso, podemos nos lembrar do famoso experimento da prisão de Stanford conduzido pelo renomado comportamentalista Phillip Zimbardo. Há um documentário interessante sobre o tema intitulado “O Experimento de Aprisionamento de Stanford”.
Apesar de haver o consentimento da participação do sujeito no teste, o Código de Nuremberg1 diz que “o experimento deve respeitar as necessidades dos indivíduos participantes, evitando sofrimentos e danos desnecessários aos mesmos e gerar resultados positivos para a sociedade”2.
Se apenas o aspecto comportamental dos sujeitos estivesse sob júdice, menos mal, porém não é isso que acontece! São 26 sujeitos expostos em uma competição análoga a uma “rinha de galo” que favorece o desentendimento e a exclusão de um “oponente”. O público, por sua vez, entra em um modo julgador de moralidade, palpitando sem critérios a vida alheia, contrapondo a empatia, já que essa se dá justamente pelo livramento do julgamento para a compreensão da perspectiva alheia.
Óbvio que nem tudo é trevas! A sociedade imbuída em polêmicas sobre os comportamentos mais abjetos remolda a realidade e transforma a cultura. Um exemplo é o caso de “Rodriguinho e Yasmin Brunet”, onde o praticamente esquecido cantor de pagode faz o seguinte comentário: “Ela já foi melhor, ela está mais velha hoje. […] você percebe que ela tá mais velha. Ela largou a mão aqui. Hoje ela comeu dois pacotes de bolacha com requeijão.”.
Para o Rodrigo, deixo ninguém menos que Simone:
Ninguém é mais arrogante em relação às mulheres, mais agressivo ou desdenhoso do que o homem que duvida de sua virilidade
Simone de Beauvoir
Nesse arcabouço cultural machista, qualquer homem, por mais medíocre que seja, sente-se no direito de tecer um comentário sobre qualquer mulher.
O reflexo social do observador
No fascinante campo da Teoria Social Cognitiva, a observação do comportamento humano em contextos específicos, como a visualização de reality shows, pode ser comparada à clássica experiência do “Bobo Doll” conduzida por Albert Bandura. Neste cenário, o observador assume um papel crucial, espelhando e absorvendo padrões de comportamento exibidos pelos participantes da atração televisiva.
Ao sintonizar um reality show, o observador se torna um espelho da dinâmica social retratada na tela. A influência dos personagens naquele microcosmo televisivo é absorvida e, por sua vez, refletida na percepção do observador sobre questões como competitividade, relacionamentos interpessoais e resolução de conflitos.
Assim como na experiência do Bobo Doll, onde crianças observavam adultos demonstrando comportamentos agressivos em relação a um boneco, o espectador de um reality show muitas vezes é exposto a interações intensas, rivalidades e estratégias maquiavélicas entre os participantes. Esse reflexo social pode moldar atitudes e valores, influenciando a forma como o observador lida com conflitos, competição e, até mesmo, empatia em seu próprio ambiente cotidiano.
Além disso, a experiência do observador em um reality show pode gerar um fenômeno interessante de identificação e projeção. Ao se envolver emocionalmente com os participantes, o espectador pode se ver refletido em situações similares da vida real, gerando reflexões sobre seu próprio comportamento e atitudes.
Contudo, é fundamental questionar até que ponto a exposição a esses cenários televisivos pode impactar as relações sociais e o comportamento do indivíduo fora do contexto do programa. O espectador pode absorver valores positivos, como resiliência e trabalho em equipe, ou, por outro lado, internalizar padrões mais negativos, como manipulação e competitividade desenfreada.
Em última análise, a experiência do observador de reality shows, ao espelhar o comportamento humano sob os holofotes, destaca a complexidade das influências sociais na formação de atitudes e comportamentos. É crucial cultivar uma consciência crítica para filtrar e interpretar as mensagens transmitidas, garantindo que o reflexo social seja uma fonte de aprendizado e compreensão, em vez de um simples espelho passivo de comportamentos superficialmente exibidos.
Contudo, é possível observar de alguns participantes comportamentos exacerbados de misoginia e cultuação de um corpo perfeito, reforçando estereótipos quase inalcançáveis. A exposição constante a padrões de beleza irreais e a representação desigual de gênero podem moldar as expectativas sociais do observador, levando a uma internalização prejudicial de normas que perpetuam desigualdades e preconceitos. A cultura do espetáculo, muitas vezes presente nos reality shows, pode amplificar a objetificação e a competição exacerbada entre os participantes, o que, por sua vez, influencia a percepção do espectador sobre a valorização do corpo e os papéis de gênero.
Este reflexo social, permeado por estereótipos prejudiciais, destaca a necessidade de um olhar crítico e de uma análise cuidadosa sobre a influência desses programas na construção das normas sociais e valores individuais. Encorajar uma visão mais equilibrada e inclusiva nas narrativas televisivas é crucial para mitigar os impactos negativos desse espelho social na sociedade em geral.
Assista ao vídeo do Experimento do Bobo Doll
- O Código de Nuremberg é um conjunto de princípios éticos e legais estabelecidos após os Julgamentos de Nuremberg, que ocorreram após a Segunda Guerra Mundial. Esses princípios visavam julgar criminosos de guerra nazistas e estabeleceram as bases para os padrões éticos em pesquisas médicas envolvendo seres humanos. O código enfatiza o consentimento voluntário, a minimização de riscos e a importância do benefício para a sociedade nas pesquisas médicas.
↩︎ - Costa, Vitor Hugo Loureiro Bruno, Landim, Ilana Camurça, & Borsa, Juliane Callegaro. (2017). Aspectos éticos das pesquisas em psicologia: vulnerabilidade versus proteção. Revista da SPAGESP, 18(2), 16-26. Recuperado em 16 de janeiro de 2024, de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-29702017000200003&lng=pt&tlng=pt. ↩︎