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O Setting é laico

Entre nós, psicólogos, e até mesmo entre os que se intitulam psicoterapeutas sem serem psicólogos, deve, ou deveria haver um entendimento sobre o processo de formação individual de Deus para o sujeito amparado por um setting terapêutico, contemplando na totalidade a extensão complexa e multifacetada que o conceito de Deus, enquanto entidade autoconstruída, representa a ele, reconhecendo-a como parte integrante de sua identidade e história.

Compreender o fenômeno dessa construção reativa favorece que o profissional terapeuta evite que seu próprio conjunto de regras e valores de fé interfiram na aliança terapêutica, caso contrário, esse terapeuta pode estar a um passo de cometer uma falta ética, sendo que é vedado ao psicólogo:

“Induzir a convicções políticas, filosóficas, morais, ideológicas, religiosas, de orientação sexual ou a qualquer tipo de preconceito, quando do exercício de suas funções profissionais;”

CFP (2005) Código de Ética do Profissional Psicólogo. Artigo 2º, Parágrafo B.

A crença da fé é construída de forma pessoal, baseada em um conjunto de dogmas e regras sociais perpetuadas há séculos de adaptações, profanações e distorções que, ao tocar um novo indivíduo, se transforma em algo novo, mas que carrega muitas funções sociais, como o conforto para a morte e o cerceamento de liberdades individuais que “não são de Deus”, colaborando para a formações de regras morais que permeiam as interações sociais.

Independente da nossa fé, ao entrarmos no setting assumindo a posição de poder resumida àquela poltrona individual, nos cabe apenas entender como esse sujeito é influenciado pelo conjunto de autorregras que ele mesmo construiu ao longo de sua vida e isso se faz muito importante, pois para alguns, Deus é complacente e protetor, para outros, é vigilância e punição, mas para todos os que creem nele, é uma figura parental que nunca abandona e desampara.

No exercício da docência em Supervisão Clínica, costumo dizer respeitosamente aos meus alunos que deixem seu(s) Deus(es) do lado de fora do setting antes de passarem pela porta. Não digo isso com a intenção de abalar ou desestruturar a fé deles, mas reafirmo que no exercício profissional do psicólogo é importante compreender a construção subjetiva de qualquer objeto mental. Por exemplo: olhe para a cadeira que está ao seu lado nesse exato momento. O que você vê? Uma cadeira, certo? Sim! Sem dúvida é, porém, a relação objetal construída para esse item é completamente diferente para cada ser que habita esse planeta. Uma simples cadeira pode representar conforto, desconforto, medo, raiva entre outras inúmeras sensações que variam de pessoa para pessoa.

Quero dizer com isso que no mundo existem aproximadamente 7 bilhões de deuses diferentes. Por mais que o meu Deus esteja baseado no mesmo livro de regras que o seu Deus, são representações abstratas, subjetivas e individuais de um alguém hierarquicamente superior na estrutura da vida.

Vamos a um exemplo tangível. Para isso, vamos pensar em uma figura pública comum que provavelmente nós dois conhecemos: Madonna. Pronto. Tanto eu quanto você conhecemos Madonna, certo? Porém, ao mesmo tempo que a conhecemos, nem eu e nem você a conhecemos de verdade. Eu tenho uma representação mental do que ela é para mim, enquanto você tem a sua própria percepção de Madonna. Enquanto eu amo e venero Madonna, você pode não gostar dela e acreditar que ela faz mal de alguma forma para a sua vida e para a formação das pessoas com quem você se importa.

Tendo isso em mente, vamos imaginar que um paciente dentro do meu setting terapêutico me diz coisas sobre Madonna que eu considere distorcidas e equivocadas. Meu papel enquanto terapeuta é compreender essa relação construída entre o sujeito (paciente) e o objeto (Madonna) mas nunca dizer ele está errado em dizer que Madonna não é pop, por mais vontade que eu tenha em fazer isso.

A mesma regra se aplica a Deus. Simples assim.

Independente da sua crença sobre Deus, inclusive se você tem fé que não há Deus, dentro do setting deve ser contemplada a visão de Deus do sujeito e não sua. Devemos ceder espaço empático para a elaboração do caso, isto é, um espaço livre de julgamentos por valores e crenças pessoais.


E quando Deus faz mal?

Antes de falar sobre os possíveis malefícios que Deus pode causar em alguém é importante compreendermos na teoria comportamental o papel do “Agente Punidor” (AP). Um AP é uma figura disposta no ambiente que exerce punição sobre um organismo quando esse apresenta um determinado comportamento, em geral, comportamentos considerados negativos do ponto de vista social. Por exemplo: um radar de velocidade é um AP enquanto você está dirigindo em uma rodovia. Ao vistar um radar, muito provavelmente você diminui a velocidade, certo? Mas assim que ele deixa seu retrovisor, você volta a acelerar.

O AP inibe a manifestação de comportamentos antissociais em sua presença.

Sabendo disso, devemos compreender o que um comportamento antissocial é caracterizado por um padrão persistente de desrespeito e violação dos direitos dos outros. No caso da direção, exceder o limite de velocidade coloca em risco o direito dos demais de transitar em segurança.

A multa aplicada diretamente pelo Agente Punidor.

Com isso em mente, vamos a um estudo de caso clínico:

Estudo de Caso:

Paciente: J., 45 anos, solteiro, advogado.

Motivo da Consulta: Depressão, ansiedade e angústia.

Queixa Principal: J. relata sentir-se triste, desmotivado e sem esperança há cerca de 2 anos. Ele tem dificuldade para dormir, se concentrar e realizar suas atividades cotidianas. Sente-se ansioso e angustiado a maior parte do tempo, e tem pensamentos frequentes de morte.

Histórico: J. é filho único de pais religiosos. Teve uma criação rígida e repressora, onde a homossexualidade era vista como um pecado. Desde a infância, ele sempre teve dúvidas sobre sua orientação sexual, mas reprimia esses sentimentos por medo do julgamento e da rejeição da família e da comunidade.

Na adolescência, J. começou a se relacionar com homens, mas sempre em segredo e com muita culpa. Ele se casou com uma mulher aos 25 anos, com quem teve dois filhos. Apesar de ter um bom relacionamento com a esposa e os filhos, J. nunca se sentiu completamente feliz no casamento.

Mesmo após seu divórcio J. não consegue se relacionar com homens, apesar de isso habitar seus pensamentos a ponto de deixá-lo sem conseguir se concentrar em nenhuma atividade. Ele sente culpa por pensar e sentir algo por homens e entende que só o fato de pensar sobre isso já o condena, pois “Deus vê e ouve todos os meus pensamentos”.

Diagnóstico: Depressão moderada, transtorno de ansiedade generalizada e conflito de orientação sexual.

No caso de J., sua luta contra a depressão, ansiedade e angústia, elucida como a crença em um Deus punitivo e onipresente pode gerar sofrimento mental.

A internalização de um AP invisível e permanente, pode ter diversos efeitos nocivos. O medo do julgamento divino gera sentimentos de culpa e vergonha, especialmente em relação a comportamentos que o sujeito considera “pecaminosos” ou “impuros”. Para J., a crença de que Deus o condena por seus pensamentos e desejos bissexuais contribui para sua depressão e ansiedade.

Essa internalização do AP leva à repressão de emoções e desejos considerados “inaceitáveis” pela religião, como a bissexualidade no caso de J. Essa repressão gera sofrimento psicológico e dificulta o desenvolvimento de uma identidade autêntica, contribuindo para uma baixa autoestima, isolamento social e dificuldade em engajamentos a tratamentos, pois podem acreditar que seus problemas são causados por falta de fé, pecados ou provações.

O papel do terapeuta não é impor suas crenças pessoais ao paciente, mas sim ajudá-lo a explorar suas crenças e valores de forma crítica e autônoma. O objetivo é criar um espaço seguro e acolhedor para que o paciente possa:

  • Explorar suas crenças e valores religiosos;
  • Desenvolver uma fé mais saudável;
  • Aceitar-se como é;
  • Desenvolver autonomia.

A crença em um Deus punitivo e onipresente pode ter um impacto negativo na saúde mental. O papel do terapeuta é criar um espaço seguro para que o paciente explore suas crenças e valores de forma crítica e autônoma, e desenvolva uma fé mais saudável que seja fonte de conforto e força.

É importante ressaltar que nem todas as pessoas religiosas experimentam sofrimento mental em decorrência de suas crenças. O papel do terapeuta não é converter o paciente ou questionar suas crenças, mas sim ajudá-lo a entender como elas o afetam e a encontrar formas saudáveis de lidar com elas.

Ter um conhecimento básico sobre diferentes religiões é fundamental para que o terapeuta possa trabalhar com pacientes religiosos de forma eficaz.

Ao compreendermos as nuances da fé e seus impactos na saúde mental, podemos oferecer um apoio mais abrangente e acolhedor para aqueles que sofrem em silêncio.

Recomento a leitura do Livro “Religião, Psicopatologia & Saúde Mental” de Paulo Dalgalarrondo.