Skip to content Skip to sidebar Skip to footer

Pensamento crítico: a única arma contra o Pânico Moral

Em janeiro de 2020, escrevi um artigo para o LinkedIn intitulado “A falta de educação e o Pânico Moral“. No artigo, além de contextualizar o fenômeno do Pânico Moral, expliquei formas mais assertivas de realizar pesquisas por fontes confiáveis em mecanismos de busca.

Tive a ideia de trazer o texto para cá, apenas referenciando a data da postagem. No entanto, considerando as significativas mudanças ocorridas no mundo desde então, optei por escrever um novo conteúdo sobre o tema. Não que o mundo tenha mudado em si, pois, de fato, o mundo continua sendo mundo enquanto é mundo que sempre foi. Heidegger, em “Ser e Tempo”, disse que o mundo, por si só, não é um ente intramundano, embora o ente intramundano só possa ser a partir da perspectiva do mundo que se dá. No entanto, a percepção do ser no mundo foi impactada pela reformulação de perspectiva durante o período da pandemia de Covid-19 (Coronavirus Disease 2019), somada à transformação na forma como os conteúdos são produzidos de maneira assistida.

O mundo já foi impactado anteriormente por eventos de magnitude semelhante, provocando grandes avanços evolutivos na forma de existir e pensar. No livro “Armas, Germes e Aço: Os Destinos das Sociedades Humanas”, vencedor do Prêmio Pulitzer de não-ficção em 1997, Jared Diamond realiza uma análise histórica abrangente sobre guerras, doenças e revoluções tecnológicas que, de alguma forma, impulsionaram a humanidade.

A diferença entre o mundo de ontem e o de hoje reside na maneira como consumimos os conteúdos que moldam nossa forma de pensar e na transformação da produção desses conteúdos. Lembro-me vividamente de uma conversa que tive com meu avô, onde ele afirmava que a cena de Neil Armstrong andando pela Lua não passava de um truque televisivo. Meu avô faleceu mantendo a crença de que o ‘pequeno passo para o homem, grande passo para a humanidade’ de 1969 era uma tremenda fake news.

Naquela época, o acesso à informação estava restrito aos livros que consultávamos em bibliotecas, nas publicações de jornais e revistas, e na televisão 1.0. Procurar fontes confiáveis para pesquisas científicas que pudessem modificar o pensamento do meu avô era uma tarefa bastante custosa.

Hoje, no entanto, se pesquisarmos no Google sobre a expedição da Apollo 11, encontraremos milhares de conteúdos sobre o tema, inclusive de pessoas que afirmam e tentam provar que o evento foi uma fraude.

Quem está dizendo a verdade?

Se a questão fosse apenas “quem está dizendo a verdade?”, talvez não fosse tão complexo responder. No entanto, transitamos para um momento em que a pergunta fundamental é: “O que é verdade?”.

Reprodução/Instagram

Conheça o caso da influenciadora de 23 anos, Emily Pellegrini (@emilypellegrini). Em seu perfil do Instagram, com quase 300 mil seguidores, Emily arrasa o coração de uma legião de fãs.

A modelo, que fatura cerca de U$ 10.000 (cerca de R$ 50.000,00) com a venda de conteúdos adultos em um site chamado Fanvue, na verdade, não existe.

Pois é, Emily é um modelo criado por Inteligência Artificial e não existe neste mesmo plano que eu e você.

Tenho certeza que meu avô não acreditaria que essa moça não é real.

A era das deepfakes nos remete a um novo paradigma sobre o pensamento crítico.

Na última quarta-feira, 24 de janeiro de 2024, o Papa Francisco em um pronunciamento para o 58º Dia Mundial das Comunicações Sociais, alertou sobre o risco da “poluição cognitiva” que as Inteligências Artificiais podem causar na população e pediu por regulamentação das IA após ter virado alvo de um ataque por deepfake.

Enquanto não houver uma regulamentação adequada referente ao uso de inteligência artificial, seremos reféns da nossa limitação cognitiva. Digo isso embasado na fala que o Professor José Geraldo proferiu em resposta à Deputada Carolina de Toni (PL-SC) durante a CPI do MST. Na sua fala, o Professor José Geraldo aborda de maneira genial a idealização cognitiva, ao expressar que “o real não é aquilo que existe, mas é a representação que a gente faz de como a gente vê”. Assista ao vídeo para compreender o contexto e o raciocínio de forma integral.”

A Deputada, incomodada com a resposta do Professor José Geraldo, parece não conseguir compreender que, na verdade, ele está retirando dela a possível culpa histórica pela atrocidade cometida ali. Enquanto ela enxerga apenas o que pode ver, ele visualiza algo completamente diferente. Isso representa uma diferença de visão de mundo, algo que não é criado, mas sim construído.

Quer dizer então que posso eximir de culpa uma fala atroz proferida por um agente público? Claro que não! Devemos ser responsáveis pelo nosso discurso e responder por ele. Entretanto, a questão aqui é que, da perspectiva desse sujeito que cometeu um crime por conta de uma fala que proferiu, ele estará sendo culpado por algo que não cometeu. A menos, é claro, que esse sujeito tenha plena consciência da atrocidade de sua fala e mesmo assim sustente a alegação.

Quando nos deparamos com alguém, especialmente uma figura pública, que expressa ideias contrárias às nossas, muitas vezes é difícil concordar devido às diferenças em nossa visão de mundo. No entanto, é importante reconhecer que essa discordância não implica automaticamente que a pessoa seja má; simplesmente reflete as distintas perspectivas que cada um possui. Aaron Beck, em seu livro ‘Prisioneiros do Ódio’, destaca que é mais fácil sentir empatia pela vítima do que pelo agressor. Contudo, ele ressalta que, para verdadeiramente cultivarmos empatia, é essencial direcioná-la tanto à vítima quanto ao agressor.

Qual o risco disso para o Pânico Moral?

Como mencionei em meu artigo original, o “pânico moral” é definido como uma “ansiedade pública ou alarme em resposta a uma suposta ameaça aos padrões da sociedade”. Isso significa que uma notícia falsa, elaborada com grande refinamento, pode servir como gatilho para uma onda de violência provocada por um grupo de pessoas amedrontadas, de forma rápida e eficiente.

Para ilustrar, volto ao exemplo das bruxas que foram brutalmente massacradas por aqueles que acreditavam estar do lado correto da história.

Imagine um camponês que vive em plena harmonia em sua comunidade, imerso em sua cultura de crenças e valores, e que acredita praticar apenas o bem. Esse “camponês de bem”, ao deparar-se com um forasteiro que enxerga o mundo por outro prisma, sente que o modelo pelo qual lutou arduamente para manter agora está em risco. A resposta social é convencer os outros de que esse risco deve ser eliminado, e é basicamente isso que aconteceu com as pobres bruxas. Foram eliminadas.

Agora, imagine se o “camponês de bem” tivesse em seu repertório uma ferramenta de persuasão tão eficaz quanto uma IA? Seria mais fácil criar uma realidade fictícia bem fundamentada para promover a adesão da população em muito menos tempo.

O “camponês de bem” é mau? Não necessariamente, mas suas ações podem resultar em algo maléfico pelo simples fato de não conseguir enxergar e aceitar a realidade do outro, não como algo que ele precise combater, mas que ele pode simplesmente rejeitar. A questão aqui é que lutamos de forma hercúlea para fazer com que o outro enxergue com nossos olhos, mesmo sem saber que este é basicamente o motivo principal para nosso sofrimento psíquico.

Para desenvolver uma habilidade de pensamento crítico mais afiada, capaz de lidar com a realidade criada pela era das deepfakes, devemos ser capazes de compreender o mundo alheio e, ao mesmo tempo, não nos importarmos com ele. “Viva e deixe morrer”, como diria Paul McCartney, e não “mate para viver melhor”.

A verdade, como disse o Professor José Geraldo, é aquela que conseguimos compreender. Portanto, mergulhe nas fontes de conhecimento tradicionais e forme suas próprias conclusões sobre o mundo. O pensamento crítico exige algo raro: pensar. Ao pensar por si mesmo – e não simplesmente adotar um argumento superficial de uma prateleira – o indivíduo constrói sua única e bela realidade. Isso nos leva de volta a Heidegger, afirmando que o mundo só é mundo porque o entre intramundano se dá.

Pense, critique e torne-se um ser no mundo pelo qual teria orgulho se o encontrasse um dia.